Entenda como a IA generativa está assassinando o jornalismo

A atividade do jornalismo está cada vez mais complexa e ameaçada num momento em que ações eminentemente humanas agora são assumidas pela Inteligência Artificial. Não sou contra o uso da tecnologia, pelo contrário, a emprego na revisão de textos e cruzamento de dados, processamento de imagens e outras ações. O problema surge quando a tecnologia interfere de forma a escolher e oferecer resumos rasos para os leitores, em muitos casos, trazendo opiniões que colhe em fontes duvidosas ou manipuladas. O fato consumado é que os serviços de IA estão assassinando o jornalismo, matando o tráfego dos sites. O resultado disso não será nada interessante para as pessoas em todo o mundo.

A IA generativa (Gemini, ChatGPT, Copilot, entre outros) entrou no ecossistema, “resumindo” conteúdos jornalísticos sem necessariamente redirecionar audiência às fontes originais (explico mais à frente sobre audiência e sustentabilidade). Como resultado, o valor econômico e simbólico da apuração humana foi diluído, pois o conteúdo é consumido de forma mediada por sistemas que não produzem, apenas redistribuem e sintetizam.


É imperioso destacar que a comunicação social deve cumprir um papel funcional. É no olhar do comunicador que deve ser escolhido o que noticiar, como noticiar sem causar efeitos colaterais, com uma função prática, de alertar, informar para formar uma opinião e tomada de decisões ou mesmo um entretenimento. Essa prerrogativa sempre foi e continuará a ser uma prerrogativa humana.

Ocorre que não existe almoço grátis. A comunicação profissional, sistemática, demanda uma estrutura bem específica, e isso tem custo. A produção jornalística de qualidade é cara. Requer equipamentos bons, investimentos e o conhecimento de bons profissionais. Jornalistas bons demandam boa remuneração por um trabalho desgastante, repetitivo e que precisa ser feito 365 dias por ano.

Ou seja, não se produz reportagem a custo de banana. Reportagem, ou uma simples notícia ou nota não são postagens do tipo “repassando de outro grupo”, no WhatsApp ou Telegram, ou o tal “aconteceu agora” que surgem do nada, nos perfis no Instagram, sem detalhar o como e o porquê dos fatos.

Nem sequer pode ser considerado jornalismo a postagem dos tais “blogueiros”, que correm para disparar fotos e vídeos e supostas informações que, em sua maioria, atropelam a lei e configuram infrações legais numa proporção como nunca antes se viu. Postagem de fatos sem apuração não é notícia, é fofoca, boato, fogo de palha.

E quem está produzindo conteúdo devidamente apurado atualmente enfrenta, desde o fim de 2024, desafios extras. Com a decadência das revistas, jornais impressos, televisão e rádio, a maioria das empresas de comunicação passou a compartilhar o seu conteúdo em suas páginas nas mídias sociais e sites. Estima-se que existam no Brasil atualmente cerca de 2.500 sites noticiosos.

E como fazem dinheiro? O modelo de negócio de um site se dá em quase sua totalidade por mídia programática. Trata-se da publicidade que é lançada nas páginas por grandes agências, a maioria delas filiadas ao Google Ads. A mídia direta, aquela em que são veiculados banners nos sites, tem um desempenho pífio na receita publicitária de qualquer site. A fatia mais significativa da receita orçamentária vem da programática. Ocorre que, para alcançar uma monetização considerável, é necessário ter volume de cliques, tempo de tela aberta pelos usuários e outros fatores técnicos sobre os quais não cabe discorrer agora.

Essa realidade vinha aos trancos e barrancos sustentando a maioria dos sites. Mas, no fim de 2024, veio uma mudança nos algoritmos do Google que está mudando radicalmente o cenário. Entre outros aspectos, passaram a ser ranqueados para busca apenas conteúdos originais, assinados por jornalistas. Sem atender a uma série de critérios implementados pela big tech, adeus exibição em plataformas como Google News ou Discovery. Sem exibição, sem cliques, portanto, sem remuneração.

Sabe aqueles sites que copiam conteúdos de outros sites ou que usam serviços de IA para reescrever conteúdo de forma a parecer original? Todos fora. Claro que essa medida foi positiva, visto que inúmeros sites viraram meros reprodutores de conteúdos de terceiros. Pois bem, esse material plagiado não serve mais para render lucro aos copiadores. 
A IA precisa ser ensinada que fazer comunicação confiável requer investimento humano e equipamentos e a conta precisa ser paga

E mesmo os que produziam conteúdos originais não ficaram isentos da “foice” do Google. Em dois webinários dos quais participei nos meses de abril e junho, técnicos de sites noticiosos de grande audiência, como o Metrópoles e o ND+ de Santa Catarina, detalharam o trabalho que tiveram depois de ver suas receitas caírem vertiginosamente com as mudanças do Google.

Morte do tráfego, prejuízos e desestímulo ao trabalho

Mas não é somente isso. Se antes as pessoas usavam buscadores, predominantemente o Google, para pesquisar sobre assuntos e tinham como resposta links de sites com alto domínio de autoridade (DA) com publicações sobre o tema pesquisado, a partir da integração da IA do Google, o Gemini, em vez do link de uma publicação, a IA passou a oferecer um resumo sobre o fato, extraído de onde quer que tenha sido publicado, e nem sempre oferece em destaque o link da publicação original.

A decisão foi o “tiro de misericórdia” que faltava. Se os sites dependem do clique em suas páginas (tráfego) para serem monetizados e se têm uma IA oferecendo um resumo do que foi publicado, quantos usuários vão se interessar em clicar nos links que aparecem discretamente ao lado dos resumos?

Com audiência em queda, caem também as fontes de receita com monetização. E quem vai bancar a infraestrutura da apuração jornalística séria e custosa que citei no começo do artigo? 
Entramos num ecosissistema em que robôs informam robôs a partir do trabalho humano, resume e apresenta a interpretação. Foto: Paulo Pinto Agência Brasil

Humano alcança a alma, e a máquina?

Só para lembrar: um robô não vai a um cenário de catástrofe conversar com as pessoas para reportar informações, não vai contestar um político mentiroso cara a cara, não repassará a emoção ao relatar um roteiro turístico no meio da natureza exuberante do planeta, nem tampouco relatar a dor de uma família que teve uma criança assassinada na Faixa de Gaza. Claro, o humano alcança a alma, algo que a máquina jamais sentirá. Esse papel permanecerá, para sempre, uma tarefa inexoravelmente humana.

Resta saber quando haverá um acordo para uma IA ressarcir a um humano o trabalho que ela busca e exibe aos seus usuários. Ou é isso, ou chegará um tempo em que não haverá mais quem vá à frente de batalha buscar informações humanamente confiáveis.

Se a sociedade não encontrar meios de retribuir o trabalho humano que produz conhecimento, acabaremos com uma realidade em que robôs informam robôs, e os cidadãos deixam de saber de onde vêm os fatos. O futuro do jornalismo dependerá de transformar o “robô que rouba audiência” em um parceiro que remunera o conteúdo original.



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