Uma defesa da hipocrisia

Se você é usuário minimamente regular deste minifúndio cibernético, que mantenho no ar a duras penas, sob o olhar desaprovador dos conservadores, o olhar preocupado dos amigos (pensar custa caro e coloca a gente sob riscos). Acusação de bravateiro por outros e de avaliação dos mais ácidos de manter um espaço modorrento, "capaz de dar dengue", mas se ainda assim é daqueles que vêm em busca de alguma coisa interessante, certamente irá gostar desse artigo de João Pereira Coutinho, publicado na página E10 do Ilustrada, da Folha de São Paulo nesta terça-feira, 3. Quero escrever como ele um dia.

Adverto que não é praxe deste minifúndio replicar obra da lavra alheia. Na época em que tudo se reproduz, ficou fácil copiar e colar. Condeno isso veementemente, quando feita de forma sistemática, como é costumeiro por inúmerios sítios por aí. Mas vamos abrir uma exceção, em nome da necessidade da divulgação de um bom texto.

Afinal, como o próprio autor diz, "O fato de algo ser moralmente condenável não significa que deva ser legalmente proibido". Adorei isso. Afinal, não há vida que vez ou outra apele para alguma pequena, média ou grande imoralidade, em nome de sabe-se lá do que?. Autoafirmação? Carência? Necessidade de se sentir vivo, como homem ou mulher? Podem ser várias as origens tácitas das imoralidades humanas. Segue o texto do João Pereira Coutinho.

Ironias da vida: falamos com uma pessoa de tendências progressistas sobre a liberalização das drogas. Ela concorda: as políticas repressivas falharam. Só a liberalização diminui o tráfico.

E, além disso, cada um sabe de si na forma como usa e abusa da própria liberdade: quem sou eu para impor a terceiros os meus pontos de vista moralistas e repressivos?

Calma, camaradas. Tanta violência retórica não se justifica: já escrevi repetidas vezes que o meu "conservadorismo de costumes" só se aplica a matérias de vida ou morte.

A liberdade individual termina quando começa a liberdade dos outros? Deploro esse clichê.

Melhor dizer que a liberdade individual termina quando está em causa uma vida humana -a do próprio ou a de terceiros. Aborto, eutanásia, suicídio assistido, pena de morte- não contem comigo para a jornada.

Mas contem comigo para o resto. E o resto, lamento informar, inclui a prostituição também.

Sim, eu sei: idealmente, o amor não deveria estar à venda, embora seja sempre possível contar a piada de que a única diferença entre sexo pago e sexo grátis é que sexo grátis, normalmente, fica mais caro.

Aqui, o meu interlocutor progressista hesita. Se mudamos o gênero da palavra e escrevemos "interlocutora", o feminismo vem à tona e decide o assunto: a prostituição degrada as mulheres, alimenta o tráfico de seres humanos e deve ser reprimida pelas autoridades.

Um bom exemplo dessa atitude radical está na França. Leio nos jornais que o governo progressista de François Hollande tem um Ministério dos Direitos das Mulheres.

E a ministra, Najat Vallaud-Belkacem, quer acabar com a prostituição no país. A sra. Vallaud-Belkacem, manifestamente, nunca leu Maupassant ou Flaubert, escritores que construíram o melhor da literatura francesa no conforto dos bordéis.

Para a ministra, é preciso um plano de ação contra o negócio, desmantelando redes de tráfico e proxenetismo. Os clientes também serão duramente penalizados.

Perante essa deriva persecutória, só me resta dizer: "bonne chance, madame". Mas também acrescento que a ambição governamental será inútil e, além disso, abusiva.

Começa por ser abusiva porque o governo francês confunde tudo: tráfico de seres humanos com a decisão autônoma de alguém vender o corpo para fins sexuais.

As duas situações não habitam o mesmo plano moral. Traficar ou escravizar alguém é um crime contra a liberdade de terceiros. Vender o corpo para fins sexuais pode ser uma degradação da condição humana do sujeito -ou, para usar a linguagem kantiana, uma forma de sermos tratados como um meio, não como um fim.

Mas essa decisão, moralmente condenável, não constitui uma ameaça para ninguém. A minha vida e mesmo a minha liberdade não estão ameaçadas se a vizinha do lado gosta de receber cavalheiros ao serão.

Por outro lado, a ambição do governo francês será também inútil. A prostituição não é apenas a mais velha profissão do mundo. Como dizia Nelson Rodrigues, com sua insuperável sabedoria sobre a natureza humana, é também a mais velha vocação.

E nem todas as leis serão capazes de alterar a realidade: enquanto houver gente disposta a vender e a comprar sexo, haverá um mercado para o negócio.

A única diferença é que, em países que fizeram da proibição uma cruzada, esse mercado funciona na clandestinidade, desprotegendo ainda mais as mulheres que o Estado imagina proteger.

Nada disso significa, obviamente, que cabe ao Estado regular a atividade como se a prostituição fosse apenas mais um negócio entre vários. Ou, pior ainda, que o Estado pode legitimamente lucrar com ele, taxando os seus proventos. O Estado não deve ser um proxeneta coletivo.

Tolerar a prostituição significa apenas isso: tolerar. O fato de algo ser moralmente condenável não significa que deva ser legalmente proibido.

A hipocrisia, como dizia um francês ilustre, pode ser a homenagem que o vício presta à virtude. Mas, sem essa homenagem, as sociedades humanas seriam lugares inóspitos para habitar.

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