O Harém de Kadafi


O artigo do minifúndio de hoje poderia ser um relato das jovens, nos nossos bairros, feitas escravas sexuais de traficantes e bandos criminosos. Não faltam exemplos de belas meninas cooptadas pelo crime, após despertar, com sua mocidade, a atenção de bandidinhos. Mas o relato de "O Harém de Kadafi", da jornalista Annick Cojean também impressiona. 

Soraya tinha apenas quinze anos quando Muamar Kadafi foi visitar a escola onde ela estudava. No momento em que ela lhe estendeu um buquê de flores, ele colocou a mão na cabeça da menina e acariciou seus cabelos. Era o gesto secreto que sinalizava a suas guarda-costas que ele a havia escolhido.

Ainda menina, Soraya foi raptada e viu sua infância chegar ao fim. Durante sete anos, foi estuprada, espancada, forçada a consumir álcool e cocaína e depois integrada às tropas das "amazonas" de Kadafi.

No livro,  Cojean dá voz a Soraya, desvelando um aspecto pouco conhecido da ditadura de Kadafi - o abuso de drogas que estimulava a megalomania sangrenta do ditador e o cruel abuso sexual de jovens líbias, escolhidas entre aquelas que lhe chamassem atenção.

Inúmeras mulheres tiveram o mesmo destino de Soraya, centenas provavelmente.  Talvez nunca se saiba ao certo, pois o assunto ainda é tabu na Líbia. 

Annick Cojean arriscou a vida ao ir a Trípoli investigar essa história. Ali, encontrou uma sociedade hipócrita e decadente, dilacerada pela prostituição, pela corrupção, pelo terror, por estupros e assassinatos.

A jornalista  possibilita que as vítimas do ditador líbio contem sua história para o mundo, devolvendo um pouco de dignidade a mulheres cuja vida foi destruída por um monstro.

A autora tentou refazer o caminho de Soraya, mas teve muita dificuldade para obter informações e chegou a ser ameaçada para parar com o trabalho. Ainda conta de maneira mais reduzida – já que ninguém quis dar nenhum detalhe que pudesse levar à descoberta de sua real identidade – as tragédias de outras líbias marcadas pelos apetites sádicos do ditador. 
Algumas são tão jovens quanto a do relato anterior, outras já passam dos 50 anos. Todas, no entanto, se lembram dos horrores que viveram, mas tentam esconder que foram “maculadas”.

Uma das aparições de Kadafi com a sua guarda formada por mulheres e conhecida internacionalmente por amazonas. Um número indefinido era de escravas sexuais do ditador líbio
A autora e as próprias fontes avaliam que a conservadora sociedade líbia prefere esquecer essa faceta de seu passado. Além disso, os abusos inimagináveis vividos por elas as transformam em vítimas incômodas, que podem acabar com a honra de suas famílias -- para certos pais e irmãos, era melhor que estivessem mortas. E alguns até cometeriam o assassinato para limpar a reputação com o sangue das “mundanas”.

Esse é o segundo choque causado pela obra. Enquanto internacionalmente a história causa estarrecimento, mais uma vez as vítimas de Kadafi sofrem com o abandono, o silêncio e a certeza de que poucas vezes há um futuro digno para elas – aos menos se continuarem no país em que nasceram. 

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