"Isso aqui é a treva, meu irmão"

“Não coloca no seu texto que foi a polícia, senão você vai ser a próxima”. Parece incrível que essa frase tenha sido dita pelo Walgney Carvalho a uma colega jornalista que cobria o velório e sepultamento do repórter Rodrigo Neto, no dia 8 de março de 2013. 


Passados exatos 37 dias depois desta fala, infeliz, quem teve o mesmo destino de Rodrigo Neto, foi o próprio Carvalho. 

A colega que ouviu isso ficou furibunda e soltava falação contra o fotógrafo. Recomendei a ela que não ligasse, pois esse era o jeito destrambelhando dele falar sobre tudo e ninguém iria mudar isso. 

Desde segunda-feira, 15, tento arrumar um tempo para voltar a este minifúndio cibernético. Falta tempo e vontade de escrever. Principalmente sobre este assunto. Mas não há nada que acordar cedo não resolva. 

A voltar ao Carvalho, talvez por conviver muito próximo da morte, no trabalho fotográfico que fazia, falasse muito sobre o tema. “Hoje está muito fácil um sujeito pegar um revólver e descarregar sobre a cabeça de qualquer um e ninguém fica sabendo quem foi”, disse ele em uma recente e rápida conversa de esquina de rua. 

E sempre emendava. “O cara que fica falando muito por aí corre sério risco de amanhecer com a boca cheia de formiga”. Ouvi isso dele pelo menos umas cinco vezes. 

Carvalho não gostava de ver repórteres chegar aos locais dos homicídios, acidentes com vítimas e chacinas. Era clara a reação dele ao perceber que havia mais uma máquina fotográfica funcionando na cena do crime, que não fosse a sua. Acostumei com isso. Nem ligava para suas caras e bocas. Afinal, na maioria dos casos, estava ele mais preocupado mesmo em fazer registros para a perícia da PC. 

Há alguns anos, entretanto, presenciei uma cena que me fez concluir, de vez, a ideia de que o Carvalho era mesmo destemido e fazia jus ao apelido (Carvalho Loko) que ele mesmo admitia. 

A polícia de Ipatinga descobriu que uma empresa de entrega de marmitas, a “cascuda”, como os presos chamam o marmitex, estava introduzindo telefones celulares no Ceresp, escondidos em meio a comida.  
Foto: Alex Ferreira. Celular para o Ceresp em Ipatinga. Empresa embalava algo mais do que comida na "cascuda"

Em um fim de manhã no dia 9 de outubro de 2010, a Kombi da empresa, com centenas de marmitas foi abordada ao sair do distrito industrial de Ipatinga. Cheguei ao local quando a polícia iniciava a abertura das marmitas em busca de celulares. Foram encontrados dois no fundo de duas cascudas. 

O carvalho estava lá. As horas andavam e já se aproximavam as 13h30. O cheiro de comida bem temperada espalhava no ar. Quem não tinha almoçado ainda estava com a boca salivada. O cardápio do dia era "arroz sonho de preso", bem solto, feijão branco, peixe frito e salada. 

Em determinada altura da apuração, Carvalho não se fez de rogado. Colocou a câmera de lado, passou a mão em uma cascuda ainda intacta e mandou ver. 

Foto: Alex Ferreira - Com a demora para ir almoçar, Carvalho colocou a câmera de lado e pegou uma cascuda intacta. "Não fez curso de sobrevivência em selva?"

Comeu o peixe com a mão, improvisou uma colher com a tampa de alumínio. Disse que o filé de merluza estava uma delícia  e ainda reforçou com mais alguns pedaços retirados de outra marmita. Reclamou da falta de limão. Um investigador, que estava ao nosso lado olhou, olhou e disse brincando. “Isso aqui é a treva, meu irmão”. 


Ao que Carvalho retrucou também irônico. “Não fez curso de sobrevivência na selva?”. Terminei meu trabalho e fui embora, com uma vontade danada de comer peixe frito.

Comentários