O doutor do sofrimento

Esse, da foto, é o Rael. Eu o conheci em um dia de caminhada à beira mar, na Praia do Farol, exatamente às 15h de 9 de janeiro deste ano. 

Quando o encontrei, por um acaso, carregava uma âncora de 15 quilos, uma rede de pesca e alguns peixes numa caixa de isopor no bagageiro dianteiro da bicicleta cuja corrente parecia mais uma correia, de tanta ferrugem acumulada.




Em dias de “maré morta”, quando a lua está na mudança de fase, a areia perto da arrebentação fica fofa. É dificultoso caminhar ou pedalar bicicleta sobre ela.

- Você entende das fases da lua?, quis saber ele.
- Sei um pouco, respondi.
- Conheço muito “doutor” que não sabe nada, retrucou
- De fato
- Eu não estudei, não fui à escola, mas aprendi muito na vida
- A é? O senhor vive somente da pesca?
- Conserto carros também. Tenho uma oficina aí no Prado. Tenho dois filhos. Para eles eu procuro dar uma infância que me foi roubada.

E prosseguiu num relato de uns 30 minutos seguintes, sobre sua infância roubada. A história não é inédita, mas é incrível como se repete numa terra marcada pelo contraste entre a beleza do atlântico e a pobreza de um povo.
Foto: Alex Ferreira - Mesmo diante das "bênçãos excessivas da natureza", a maior parte do povo sobrevive em necessidade e pobreza desde o período colonial
Pobreza que não é recente, visto que em seus relatos do começo do século XIX o inglês Thomas Lindley, que percorreu aquela mesma região, ficou surpreso ao constatar que a abundância de recursos naturais do Brasil não resultava em riqueza, desenvolvimento ou conforto material.

"Num país que, com o cultivo e a indústria, chegaria à fartura com as bênçãos excessivas da natureza, a maior parte do povo sobrevive em necessidade e pobreza, enquanto mesmo a minoria restante não conhece os desfrutes que fazem a vida desejável", escreveu Lindley.

Pois Rael – hoje com 50 anos - está entre os desafortunados dessa realidade. Ele relata que aos 11 anos foi levado para a capital do estado da Bahia, Salvador, por uma família rica. Foi transformado em empregado doméstico. Cuidava dos jardins da mansão dos patrões, limpava os carros, lavava os banheiros, as piscinas e fazia outros serviços domésticos. A história me fez lembrar de “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho.

O fato é que Rael não era remunerado. Sem salário, era um escravo no século XX. Trabalhava e recebia como pagamento uma cama nos fundos da mansão e a comida que o mantinha vivo.

- Somente aos 17 anos, quando comecei a sair para a rua é que fui descobrir com outros rapazes da minha idade esse negócio de carteira assinada e salário. Eu não brinquei na minha infância e adolescência. Eu fui escravo, disse sem esconder as lágrimas.

- Como o senhor saiu de lá?

- Fugi quando tinha 18 anos, voltei para cá e já não conhecia mais ninguém. As pessoas já não se lembravam mais de mim. Tive que recomeçar a vida onde eu nasci.

E a tal família, que era rica há 50 anos cresceu e ficou mais rica, relata Rael.

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