Aproveitei o ócio das férias para por em dia uma lista de
leituras obrigatórias. Entre “Vou te contar”, coletânea de textos inspirados em
músicas de Tom Jobim, e o Processo, li O Holocausto Brasileiro,
livro-reportagem sobre o hospital manicômio de Barbacena, na Zona da Mata
Mineira. É impossível ficar impávido diante do livro de Daniela Arbex.
Convivi, na infância, muito perto da loucura. Por isso, o
livro me tocou profundamente. Explico isso mais adiante.
Chamaram-me a atenção dois fatos não abordados pela autora,
primeiro, as pessoas que iam, se tratavam e voltavam para suas casas. Depois,
as pessoas que fugiam da instituição em Barbacena.
Dos que fugiam eu os vi várias vezes. Minha tia morava perto
do distrito de Realeza, em Manhuaçu e, quando criança, ia muito à sua casa.
Gostava de ver o movimento de carros no entroncamento das BRs 116 (Rio-Bahia) e
262 (BH/Vitória).
Lá, era comum que chegassem andarilhos fugidos de Barbacena.
Eles paravam, pediam água e iam-se embora. Eram antigos internos. Para mim,
alguns eram fugitivos. Outros, eram colocados no olho da rua e, sem
referências, saíam perambulando pelo mundo em busca do nada.
“Quase todo dia passa um vindo de lá. Eles contam coisas
horríveis que acontecem em Barbacena, meu filho”, explica a tia Maria.
“Quais coisas, tia”?
“Menino, nem queira saber, vai brincar que é melhor”, dizia
a tia Maria com um ar de impaciência.
Os verdadeiros miseráveis
A outra convivência que tive com a loucura, foi por causa de
um doente mental chamado Messias, que morava com o irmão, Davi e a mãe, dona
Raimunda. Eram meus vizinhos em Manhuaçu. Em dias e noites em que era atacado
por crises, Messias dava urros que ecoavam pelo vale do Coqueiro afora. Também
desferia murros nas paredes e portas de madeira. Eu, ainda criança, deitado em
minha palhoça, tremia de medo daquilo tudo.
Depois cresci e perdi o medo. Messias, o doido, gostava de
passar lá em casa para tomar café, comer broa e contar causos, inclusive, os de
Barbacena, onde foi internado e de onde saiu levando uma bíblia ilustrada.
Na medida em que cresci encorajei-me o suficiente para ir à
casa daquela família para folhear a bíblia, tratada por Messias como um tesouro,
cuidadosamente guardado a sete chaves. Dizia que o livro não poderia sair de
dentro da casa dele, porque senão o diabo entraria lá.
Com piso em tijolos desgastados pelo tempo, a casa daquela
família era um lugar muito doido. Por fora a residência era branca, cercada por
enormes pés de rosas brancas e vermelhas, um pé de mamão e uma bica d’água
daquelas que despejam ininterruptamente. Por dentro, o lugar se transformava.
A fuligem do fogão a lenha tomava conta de todos os cômodos.
As paredes da cozinha eram totalmente pretas. A picumã pendia do telhado como
se fossem estalactites em uma caverna.
Messias tinha desenvolvido uma técnica de fazer desenhos
usando o polegar como pincel. Não esfregava o dedo sujo de tinta verde e marrom
na parede. Ele “carimbava” a tinta e ia formando desenhos, inclusive com sombras
e contrastes. A maioria dos desenhos que enfeitavam as paredes era diabólica,
de anjos negros, morcegos e demônios. Dizia que retratava o que via ao seu
redor.
Minha família me obrigava a rezar Credos, Ave Maria e Pai
Nosso toda vez que ia lá visitar a família com a desculpa de levar broa de fubá
para dona Raimunda.
Comumente, os três andavam com vestimentas em farrapos e
ensebadas. Como ninguém trabalhava, os três viviam dos proventos da idosa
aposentada. Davi, ficava com boa parte do benefício para comprar cachaça no
boteco da dona Rosa, localizado a um quilômetro da casa, contra quem pesava a
desconfiança de ser iniciada em artes de bruxaria.
Os três pareciam-se com personagens descritos por Victor Hugo,
em Os Miseráveis. Em especial Davi. Com pele parda e um nariz enorme, cabelos
ensebados e esticados para trás, ainda era gago e, da arcada dentária, possuía
um único incisivo inferior que insistia em despontar entre lábios mesmo quando
estava com a boca fechada. Como ele convivia com aquilo, não faço ideia.
No dia do recebimento do benefício, os três podiam ser
vistos passando vagarosamente pela estrada em frente minha casa, a caminho do
banco. Dona Raimunda voltava com Messias e Davi passava bem mais tarde com o
andar cambaleante da aguardente que ingeria com uma parte do dinheiro da mãe
velhinha.
Houve um tempo em que Davi se excedeu. Embora o doido fosse
o irmão, fora ele quem certo dia bateu muito na anciã. Como Raimunda precisou de
atendimento médico, o caso saiu das quatro paredes do casebre e um grupo de
mulheres do Apostolado da Oração, capitaneado por minha avó, a matriarca dos
Ferreira, tratou de denunciar o caso e arrumar uma vaga para dona Raimunda no
Asilo São Vicente de Paulo, que existia ao lado do Hospital César Leite.
Davi e Messias ficaram sem os proventos da aposentadoria e
Davi teve que ir trabalhar nas lavouras de café para que ele e o irmão inválido
tivessem o que comer. Nos fins de semana, podia ser encontrado caído bêbado na
beira da estradinha que levava à sua casa. Nutriu um ódio mortal contra minha
avó, a quem acusava de ser a responsável por ter “jogado no asilo” a mãe dele.
Quando eu tinha 15 anos
mudamos para a cidade e nunca mais ouvi falar dos dois. Em 2014 voltei ao local
e constatei que outra família morava na casa, palco das loucuras do Messias, agora
reconstruída e cercada por uma plantação de café. Restam, entretanto,
lembranças daquele lugar fantasmagórico. Um anexo reativado na minha memória
graças a história documentada por Daniela Arbex.
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